TEXTO SOBRE REVOLUÇÃO FRANCESA DE AUTORIA DE ERIC HOBSBAWN
Se a economia
do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução
industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente
pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para as ferrovias e
fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas socioeconômicas
tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a
elas deu suas ideias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro
terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes, e a
política europeia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1917 foi em grande parte a
luta a favor e contra os princípios de 1789, ou os ainda mais incendiários de 1793. A França forneceu o
vocabulário e os temas da política liberal e radical-democrática para a maior
parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o
vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de
organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria
dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que
tinham até então resistido as ideias europeias inicialmente através da
influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa.
O final do
século XVIII, como vimos, foi uma época de crise para os velhos regimes da Europa
e seus sistemas econômicos, e suas últimas décadas foram cheias de agitações
políticas, às vezes chegando a ponto da revolta, e de movimentos coloniais em
busca de autonomia, às vezes atingindo o ponto da secessão: não só nos EUA
(1776-83) mas também na Irlanda (1782-4), na Bélgica e em Liège (1787-90), na
Holanda (1783-7), em Genebra e até
mesmo - conforme já se discutiu-
na Inglaterra (1779). A quantidade de agitações políticas é tão grande que
alguns historiadores mais recentes falaram de uma "era da revolução
democrática", em que a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora o
mais dramático e de maior alcance e repercussão '.
Na medida em que a crise do velho regime não
foi puramente um fenômeno francês, há algum peso nestas observações.
Igualmente, pode-se argumentar que a Revolução Russa de 1917 (que ocupa uma
posição de importância análoga em nosso século) foi meramente o mais dramático
de toda uma série de movimentos semelhantes, tais como os que - alguns anos
antes de 1917 - finalmente puseram fim aos antigos impérios turco e chinês.
Ainda assim, há aí um equívoco. A Revolução Francesa pode não ter sido um fenômeno
isolado, mas foi muito mais fundamental do que os outros fenômenos
contemporâneos e suas consequências foram portanto mais profundas. Em primeiro
lugar, ela se deu no mais populoso e poderoso Estado da Europa (não
considerando a Rússia). Em 1789, cerca de um em cada cinco europeus era
francês. Em segundo lugar, ela foi, diferentemente de toda as revoluções que a
precederam e a seguiram, uma revolução social de massa, e incomensuravelmente
mais radical do que qualquer levante comparável. Não é um fato meramente
acidental que os revolucionários americanos e os jacobinos britânicos que
emigraram para a França devido a suas simpatias políticas tenham sido vistos
como moderados na França. Tom Paine era um extremista na Grã-Bretanha e na
América; mas em Paris ele estava entre os mais moderados dos girondinos.
Resultaram das revoluções americanas, grosseiramente falando, países que
continuaram a ser o que eram, somente sem o controle político dos britânicos,
espanhóis e portugueses. O resultado da Revolução Francesa foi que a era de
Balzac substituiu a era de Mme. Dubarry.
Em terceiro
lugar, entre todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única
ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas ideias de
fato o revolucionaram. A revolução americana foi um acontecimento crucial na
história americana, mas (exceto nos países diretamente envolvidos nela ou por
ela) deixou poucos traços relevantes em outras partes. A Revolução Francesa é um
marco em todos os países. Suas repercussões, ao contrário daquelas da revolução
americana, ocasionaram os levantes que levaram à libertação da América Latina
depois de 1808. Sua influência direta se espalhou até Bengala, onde Ram Mohan
Roy foi inspirado por ela a fundar o primeiro movimento de reforma hindu,
predecessor do moderno nacionalismo indiano. (Quando visitou a Inglaterra em
1830, ele insistiu em viajar num navio francês para demonstrar o entusiasmo que
tinha pelos princípios da Revolução.) A Revolução Francesa foi, como se disse
bem, "o primeiro grande movimento de ideias da cristandade ocidental que
teve qualquer efeito real sobre o mundo islâmico", e isto quase que de
imediato. Por volta da metade do século XIX, a palavra turca vatan, que até então simplesmente
descrevia o local de nascimento ou a residência de um homem, tinha começado a
se transformar, sob sua influência, em algo parecido com patrie, o termo "liberdade", antes de 1800 sobretudo uma
expressão legal que denotava o oposto de "escravidão", tinha começado
a adquirir um novo conteúdo político. Sua influência direta é universal, pois
ela forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes,
suas lições (interpretadas segundo o gosto de cada um) tendo sido incorporadas
ao socialismo e ao comunismo modernos.
A Revolução
Francesa é assim a revolução do seu tempo, e não apenas uma, embora a mais
proeminente, do seu tipo. E suas origens devem portanto ser procuradas não
meramente em condições gerais da Europa, mas sim na situação específica da
França. Sua peculiaridade é talvez melhor ilustrada em termos internacionais. Durante
todo o século XVIII a França foi o maior rival econômico da Grã-Bretanha. Seu
comércio externo, que se multiplicou quatro vezes entre 1720 e 1780, causava
ansiedade; seu sistema colonial foi em certas áreas (como nas índias
Ocidentais) mais dinâmico que o britânico. Mesmo assim a França não era uma
potência como a Grã-Bretanha, cuja política externa já era substancialmente
determinada pelos interesses da expansão capitalista. Ela era a mais poderosa,
e sob vários aspectos a mais típica, das velhas e aristocráticas monarquias
absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e
os interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais
ascendentes era mais agudo na franca do que em outras partes.
As novas
forças sabiam muito precisamente o que queriam. Turgot, o economista fisiocrata,
lutou por uma exploração eficiente da terra, por um comércio e uma empresa
livres, por uma administração eficiente e padronizada de um único território
nacional homogêneo, pela abolição de todas as restrições e desigualdades
sociais que impediam o desenvolvimento dos recursos nacionais e por uma
administração e taxação racionais e imparciais. Ainda assim, sua tentativa de
aplicação desse programa como primeiro-ministro no período 1774-6 fracassou
lamentavelmente, e o fracasso é característico. Reformas desse tipo, em doses
modestas, não eram incompatíveis com as monarquias absolutas nem tampouco mal
recebidas. Pelo contrário, uma vez que as fortaleciam, tiveram, como já vimos uma
ampla difusão nessa época entre os chamados "déspotas esclarecidos".
Mas na maioria dos países de "despotismo esclarecido" essas reformas
ou eram inaplicáveis, e portanto meros floreios teóricos, ou então improváveis
de mudar o caráter geral de suas estruturas político-sociais; ou ainda
fracassaram em face da resistência das aristocracias locais e de outros
interesses estabelecidos, deixando o país recair em uma versão um pouco mais
limpa do seu antigo Estado. Na França elas fracassaram mais rapidamente do que
em outras partes, pois a resistência dos interesses estabelecidos era mais
efetiva. Mas os resultados deste fracasso foram mais catastróficos para a
monarquia; e as forças da mudança burguesa eram fortes demais para cair na
inatividade. Elas simplesmente transferiram suas esperanças de uma monarquia
esclarecida para o povo ou a "nação".
Não obstante,
uma generalização desta ordem não nos leva muito longe na compreensão de por
que a revolução eclodiu quando eclodiu, e por que tomou aquele curso notável.
Para isso, é mais útil considerarmos a chamada "reação feudal" que
realmente forneceu a centelha que fez explodir o barril de pólvora da França.
As 400 mil
pessoas aproximadamente que, entre os 23 milhões de franceses, formavam, a
nobreza, a inquestionável "primeira linha" da nação, embora não tão
absolutamente a salvo da intromissão das linhas menores como na Prússia e outros
lugares, estavam bastante seguras. Elas gozavam de consideráveis privilégios,
inclusive de isenção de vários impostos (mas não de tantos quanto o clero, mais
bem organizado), e do direito de receber tributos feudais. Politicamente sua
situação era menos brilhante. A monarquia absoluta, conquanto inteiramente
aristocrática e até mesmo feudal no seu ethos,
tinha destituído os nobres de sua independência política e responsabilidade e
reduzido ao mínimo suas velhas instituições representativas "estados"
e parlements. O fato continuou a se
agravar entre a mais alta aristocracia e entre a noblesse de robe mais
recente, criada pelos reis para vários fins, principalmente financeiros e
administrativos; uma classe média governamental enobrecida que expressava tanto
quanto podia o duplo descontentamento dos aristocratas e dos burgueses através
das assembleias e cortes de justiça remanescentes. Economicamente as
preocupações dos nobres não eram absolutamente desprezíveis. Guerreiros e não
profissionais ou empresários por nascimento c tradição - os nobres eram até
mesmo formalmente impedidos de exercer um oficio ou profissão - eles dependiam
da renda de suas propriedades, ou, se pertencessem à minoria privilegiada de
grandes nobres ou cortesãos, de casamentos milionários, pensões, presentes ou
sinecuras da corte. Mas os gastos que exigia o status de nobre eram grandes e
cada vez maiores, e suas rendas caíam - já que eram raramente administradores
inteligentes de suas fortunas, se é que de alguma forma as conseguiam
administrar. A inflação tendia a reduzir o valor de rendas fixas, como
aluguéis.
Era, portanto,
natural que os nobres usassem seu bem principal, os privilégios reconhecidos.
Durante todo o século XVIII, na França como em tantos outros países, eles
invadiram decididamente os postos oficiais que a monarquia absoluta preferira
preencher com homens da classe média, politicamente inofensivos e tecnicamente
competentes. Por volta da década de 1780, eram necessários quatro graus de
nobreza até para comprar uma patente no exército, todos os bispos eram nobres e
até mesmo as intendências, a pedra angular da administração real, tinham sido
retomadas por eles. Consequentemente, a nobreza não só exasperava os sentimentos
da classe média por sua bem-sucedida competição por postos oficiais, mas também
corroia o próprio Estado através da crescente tendência de assumir a administração
central e provinciana. De maneira semelhante, eles - e especialmente os
cavalheiros provincianos mais pobres que tinham poucos outros recursos -
tentaram neutralizar o declínio de suas rendas usando ao máximo seus
consideráveis direitos feudais para extorquir dinheiro (ou mais raramente,
serviço) do campesinato. Toda uma profissão, a dos feudistas, nasceu para
reviver os direitos obsoletos desse tipo ou então para aumentar ao máximo o
lucro dos existentes. Seu mais celebrado membro, Gracchus Babeuf, viria a se
tornar o líder da primeira revolta comunista da história moderna, em 1796. Consequentemente,
a nobreza não só exasperava a classe média mas também o campesinato.
A situação
desta classe enorme, compreendendo talvez 80% de todos os franceses, estava
longe de ser brilhante. De fato os camponeses eram em geral livres e não raro proprietários
de terras. Em quantidade efetiva, as propriedades nobres cobriam somente um quinto
da terra, as propriedades do clero talvez cobrissem outros 6%, com variações
regionais.
Assim é que na diocese de
Montpellier os camponeses já possuíam de 38 a 40% da terra, a burguesia de 18 a 19%, os nobres de 15 a 16% e o clero de 3 a 4%, enquanto um quinto era
de terras comuns. Na verdade, entretanto, a grande maioria não tinha terras ou
tinha uma quantidade insuficiente, deficiência esta aumentada pelo atraso
técnico dominante; e a fome geral de terra foi intensificada pelo aumento da
população. Os tributos feudais, os dízimos e as taxas tiravam uma grande e cada
vez maior proporção da renda do camponês, a inflação reduzia o valor do resto.
Pois só a minoria dos camponeses que tinha um constante excedente para vendas
se beneficiava dos preços crescentes; o resto, de uma maneira ou de outra,
sofria, especialmente em tempos de má colheita, quando dominavam os preços de
fome. Há pouca dúvida de que nos 20 anos que precederam a Revolução a situação
dos camponeses tenha piorado por essas razões.
Os problemas
financeiros da monarquia agravaram o quadro.
A estrutura fiscal e administrativa do reino era tremendamente obsoleta,
e, como vimos, a tentativa de remediar a situação através das reformas de 1774-6
fracassou, derrotada pela resistência dos interesses estabelecidos encabeçados
pelos parlements. Então a França envolveu-se
na guerra da independência americana. A vitória contra a Inglaterra foi obtida
ao custo da bancarrota final, e assim a revolução americana pôde proclamar-se a
causa direta da Revolução Francesa. Vários expedientes foram tentados com
sucesso cada vez menor, mas sempre longe de uma reforma fundamental que,
mobilizando a considerável capacidade tributável do país, pudesse enfrentar uma
situação em que os gastos excediam a renda em pelo menos 20% e não havia
quaisquer possibilidades de economias efetivas. Pois embora a extravagância de
Versailles tenha sido constantemente culpada pela crise, os gastos da corte só
significavam 6% dos gastos totais em 1788. A guerra, a marinha e a diplomacia
constituíam um quarto, e metade era consumida pelo serviço da dívida existente.
A guerra e a divida - a guerra americana e sua dívida - partiram a espinha da
monarquia.
A crise do
governo deu à aristocracia e aos parlements
a sua chance. Eles se recusavam a pagar pela crise se seus privilégios não
fossem estendidos. A primeira brecha no fronte do absolutismo foi uma
"assembleia de notáveis" escolhidos a dedo, mas assim mesmo rebeldes,
convocada em 1787 para satisfazer as exigências governamentais. A segunda e
decisiva brecha foi a desesperada decisão de convocar os Estados Gerais, a
velha assembleia feudal do reino, enterrada desde 1614. Assim, a Revolução
começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado. Esta tentativa
foi mal calculada por duas razões: ela subestimou as intenções independentes do
"Terceiro Estado" - a entidade fictícia destinada a representar todos
os que não eram nobres nem membros do clero, mas de fato dominada pela classe
média - e desprezou a profunda crise socioeconômica no meio da qual lançava
suas exigências políticas.
A Revolução
Francesa não foi feita ou liderada por um partido ou movimento organizado, no
sentido moderno, nem por homens que estivessem tentando levar a cabo um
programa estruturado. Nem mesmo chegou a ter "líderes" do tipo que as
revoluções do século XX nos têm apresentado, até o surgimento da figura
pós-revolucionária de Napoleão. Não obstante, um surpreendente consenso de idéias
gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário
uma unidade efetiva. O grupo era a "burguesia"; suas ideias eram as
do liberalismo clássico, conforme formuladas pelos "filósofos" e
"economistas" e difundidas pela maçonaria e associações informais.
Até este ponto os "filósofos" podem ser, com justiça, considerados responsáveis
pela Revolução. Ela teria ocorrido sem
eles; mas eles provavelmente constituíram a diferença entre um simples colapso
de um velho regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo. Em sua
forma mais geral, a ideologia de 1789 era a maçônica, expressa com tão sublime
inocência na Flauta Mágica de Mozart (1791), uma das primeiras grandes obras de
arte propagandísticas de uma época em que as mais altas realizações artísticas
pertenceram tantas vezes à propaganda. Mais especificamente, as exigências do
burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica
de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade
democrática e igualitária. "Os homens nascem e vivem livres e iguais
perante as leis", dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a
existência de distinções sociais, ainda que "somente no terreno da
utilidade comum". A propriedade privada era um direito natural, sagrado,
inalienável e inviolável. Os homens eram iguais perante a lei e as profissões
estavam igualmente abertas ao talento; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era igualmente entendido como
fato consumado que os corredores não terminariam juntos. A declaração afirmava
(como contrário à hierarquia nobre ou absolutismo) que "todos os cidadãos
têm o direito de colaborar na elaboração das leis"; mas "pessoalmente
ou através de seus representantes". E a assembleia representativa que ela
vislumbrava como o órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembleia
democraticamente eleita, nem o regime nela implícito pretendia eliminar os
reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de
terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república
democrática que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas
aspirações teóricas, embora alguns também advogassem "esta causa".
Mas no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não
era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com
liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de
contribuintes e proprietários.
Entretanto,
oficialmente esse regime expressaria não apenas seus interesses de classe, mas
também a vontade geral do "povo", que era por sua vez (uma
significativa identificação) "a nação francesa". O rei não era mais
Luís, pela Graça de Deus, Rei de França e Navarra, mas Luís, pela Graça de Deus
e do direito constitucional do Estado, Rei dos franceses. "A fonte de toda
a soberania", dizia a Declaração, "reside essencialmente na
nação". E a nação, conforme disse o Abade Sieyès, não reconhecia na terra
qualquer direito acima do seu próprio e não aceitava qualquer lei ou autoridade
que não a sua - nem a da humanidade como um todo, nem a de outras nações. Sem
dúvida, a nação francesa, como suas subsequentes imitadoras, não concebeu
inicialmente que seus interesses pudessem se chocar com os de outros povos,
mas, pelo contrário, via a si mesma como inauguradora ou participante de um movimento
de libertação geral dos povos contra a tirania. Mas de fato a rivalidade
nacional (por exemplo, a dos homens de negócios franceses com os ingleses) e a
subordinação nacional (por exemplo, a das nações conquistadas ou libertadas
face aos interesses da grande nation)
estavam implícitas no nacionalismo ao qual a burguesia de 1789 deu sua primeira
expressão oficial. "O povo" identificado com "a nação" era
um conceito revolucionário; mais revolucionário do que o programa
liberal-burguês que pretendia expressá-lo. Mas era também uma faca de dois
gumes.
Visto que os
camponeses e os trabalhadores pobres eram analfabetos, politicamente simples ou
imaturos, e o processo de eleição, indireto, 610 homens, a maioria desse tipo,
foram eleitos para representar o Terceiro Estado. A maioria da assembleia era
de advogados que desempenhavam um papel econômico importante na França
provinciana; cerca de 100 representantes eram capitalistas e homens de
negócios. O Terceiro Estado tinha lutado acirradamente, e com sucesso, para
obter uma representação tão grande quanto a da nobreza e a do clero juntas, uma
ambição moderada para um grupo que oficialmente representava 95% do povo. E
agora lutava com igual determinação pelo direito de explorar sua maioria
potencial
de votos, transformando os
Estados Gerais numa assembleia de deputados que votariam individualmente, ao
contrário do campo feudal tradicional que deliberava e votava por
"ordens" ou "estados", uma situação em que a nobreza e o
clero podiam sempre derrotar o Terceiro Estado. Foi aí que se deu a primeira
vitória revolucionária. Cerca de seis semanas após a abertura dos Estados
Gerais, os Comuns, ansiosos por evitar a ação do rei, dos nobres e do clero,
constituíram-se eles mesmo, e todos os que estavam preparados para se juntarem
a eles nos termos que ditassem, em Assembleia Nacional com o direito de
reformar a constituição. Foi feita uma tentativa contra-revolucionária que os
levou a formular suas exigências praticamente nos termos da Câmara dos Comuns
inglesa. O absolutismo atingia seus estertores, conforme Mirabeau, um brilhante
e desacreditado ex-nobre, disse ao Rei: "Majestade, vós sois um estranho
nesta assembleia e não tendes o direito de se pronunciar aqui".
O Terceiro
Estado obteve sucesso, contra a resistência unificada do rei e das ordens
privilegiadas, porque representava não apenas as opiniões de uma minoria
militante e instruída, mas também as de forças bem mais poderosas: os
trabalhadores pobres das cidades, e especialmente de Paris, e em suma, também,
o campesinato revolucionário. O que transformou uma limitada agitação
reformista em uma revolução foi o fato de que a conclamação dos Estados Gerais
coincidiu com uma profunda crise sócio-econômica. Os últimos anos da década de
1780 tinham sido, por uma complexidade de razões, um período de grandes
dificuldades praticamente para todos os ramos da economia francesa. Uma má
safra em 1788 (e 1789) e um inverno muito difícil tornaram aguda a crise. As
más safras faziam sofrer o campesinato, pois significavam que enquanto os
grandes produtores podiam vender cereais a preços de fome, a maioria dos homens
em suas insuficientes propriedades tinha provavelmente que se alimentar do
trigo reservado para o plantio ou comprar alimentos àqueles preços,
especialmente nos meses imediatamente anteriores à nova safra (maio-julho).
Obviamente as más safras faziam sofrer também os pobres das cidades, cujo custo
de vida - o pão era o principal alimento - podia duplicar. Fazia-os sofrer
ainda mais, porque o empobrecimento do campo reduzia o mercado de manufaturas e
portanto também produzia uma depressão industrial. Os pobres do interior
ficavam assim desesperados e envolvidos em distúrbios e banditismo; os pobres
das cidades ficavam duplamente desesperados já que o trabalho cessava no exato
momento em que o custo de vida subia vertiginosamente. Em circunstâncias
normais, teria ocorrido provavelmente pouco mais que agitações cegas. Mas em
1788 e 1789 uma convulsão de grandes proporções no reino c uma campanha de
propaganda e eleição deram ao desespero do povo uma perspectiva política. E lhe
apresentaram a tremenda e abaladora ideia de se libertar da pequena nobreza e
da opressão. Um povo turbulento se colocava por trás dos deputados do Terceiro
Estado.
A
contra-revolução transformou um levante de massa em potencial em um levante
efetivo. Sem dúvida era natural que o velho regime oferecesse resistência, se
necessário com força armada, embora o exército não fosse mais totalmente de
confiança. (Só sonhadores irrealistas suporiam que Luís XVI pudesse ter aceito
a derrota e imediatamente ser transformado em um monarca constitucional, mesmo
que ele tivesse sido um homem menos desprezível e estúpido do que era, casado
com uma mulher menos irresponsável e com menos miolos de galinha, e preparado
para escutar conselheiros menos desastrosos.) De fato a contra-revolução
mobilizou contra si as massas de Paris, já famintas, desconfiadas e militantes.
O resultado mais sensacional de sua mobilização foi a queda da Bastilha, uma
prisão estatal que simbolizava a autoridade real e onde os revolucionários
esperavam encontrar armas. Em tempos de revolução nada é mais poderoso do que a
queda de símbolos. A queda da Bastilha, que fez do 14 de julho a festa nacional
francesa, ratificou a queda do despotismo e foi saudada em todo o mundo como o
princípio de libertação. Até mesmo o austero filósofo Emanuel Kant, de
Koenigsberg, de quem se diz que os hábitos eram tão regrados que os cidadãos
daquela cidade acertavam por ele os seus relógios, postergou a hora de seu
passeio vespertino ao receber a notícia, de modo que convenceu a cidade de
Koenigsberg de que um fato que sacudiu o mundo tinha deveras ocorrido. O que é
mais certo é que a queda da Bastilha levou a revolução para as cidades
provincianas e para o campo.
As revoluções
camponesas são movimentos vastos, disformes, anônimos, mas irresistíveis. O que
transformou uma epidemia de inquietação camponesa em uma convulsão irreversível
foi a combinação dos levantes das cidades provincianas com uma onda de pânico
de massa, que se espalhou de forma obscura mas rapidamente por grandes regiões
do país: o chamado Grande Medo {Grande Peur), de fins de julho e princípio de
agosto de 1789. Três semanas após o 14 de julho, a estrutura social do
feudalismo rural francês e a máquina estatal da França Real ruíam em pedaços.
Tudo o que restou do poderio estatal foi uma dispersão de regimentos pouco
confiáveis, uma Assembleia Nacional sem força coercitiva e uma multiplicidade
de administrações municipais ou provincianas da classe média que logo montaram
"Guardas Nacionais" burguesas segundo o modelo de Paris. A classe
média e a aristocracia imediatamente aceitaram o inevitável: todos os
privilégios feudais foram oficialmente abolidos embora, quando a situação
política se acalmou, fosse fixado um preço rígido para sua remissão. O
Feudalismo só foi finalmente abolido em 1793. No final de agosto, a revolução
tinha também adquirido seu manifesto formal, a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão. Em contrapartida, o rei resistiu com sua costumeira estupidez, e
setores revolucionários da classe média, amedrontados com as implicações
sociais do levante de massa começaram a pensar que era chegada a hora do
conservadorismo.
Em resumo, a
principal forma da política revolucionária burguesa francesa e de todas as
subsequentes estava agora bem clara. Esta dramática dança dialética dominaria
as gerações futuras. Repetidas vezes veremos moderados reformadores da classe
média mobilizando as massas contra a resistência obstinada ou a contra-revolução.
Veremos as massas indo além dos objetivos todos rumo a suas próprias revoluções
sociais, e os moderados, por sua vez, dividindo-se em um grupo conservador, dai
em diante fazendo causa comum com os reacionários, e um grupo de esquerda,
determinado a perseguir o resto dos objetivos moderados, ainda não alcançados,
com o auxílio das massas, mesmo com o risco de perder o controle sobre elas. E
assim por diante, com repetições e variações do modelo resistência -
mobilização de massa - inclinação para a esquerda - rompimento entre os
moderados - inclinação para a direita - até que o grosso da classe média passe
daí em diante para o campo conservador, ou seja, derrotado pela revolução
social. Na maioria das revoluções burguesas subsequentes, os liberais moderados
viriam a retroceder, ou transferir-se para a ala conservadora, num estágio
bastante inicial. De fato, no século XIX vemos de modo crescente (mais
notadamente na Alemanha) que eles se tornaram absolutamente relutantes em
começar uma revolução, por medo de suas incalculáveis consequências, preferindo
um compromisso com o rei e a aristocracia. A peculiaridade da Revolução Francesa
é que uma facção da classe média liberal estava pronta a continuar
revolucionária até o, e mesmo além do, limiar da revolução anti-burguesa: eram
os jacobinos, cujo nome veio a significar "revolução radical" em toda
parte.
Por quê? Em
parte, é claro, porque a burguesia francesa não tinha ainda para temer, como os
liberais posteriores, a terrível memória da Revolução Francesa. Depois de 1794.
ficaria claro para os moderados que o regime jacobino tinha levado a revolução
longe demais para os objetivos e comodidades burgueses, exatamente como ficaria
claro para os revolucionários que "o sol de 1793", se fosse nascer de
novo, teria que brilhar sobre uma sociedade não burguesa. Por outro lado, os
jacobinos podiam sustentar o radicalismo porque em sua época não existia uma
classe que pudesse fornecer uma solução social coerente como alternativa à
deles. Esta classe só surgiu no curso da revolução industrial, com o
"proletariado" ou, mais precisamente, com as ideologias e movimentos
baseados nele. Na Revolução Francesa, a classe operária e mesmo esta é uma
designação imprópria para a massa de assalariados contratados, mas fundamentalmente
não industriais -ainda não desempenhava qualquer papel independente. Eles
tinham fome, faziam agitações e talvez sonhassem, mas por motivos práticos
seguiam os líderes não proletários. O campesinato nunca fornece uma alternativa
política para ninguém; apenas, de acordo com a ocasião, uma força quase
irresistível ou um obstáculo quase irremovível. A única alternativa para o
radicalismo burguês (se excetuarmos pequenos grupos de ideólogos ou militantes
impotentes quando destituídos do apoio das massas) eram os
"sanscúlottes". um movimento disforme, sobretudo urbano, de trabalhadores
pobres, pequenos artesãos, lojistas, artífices, pequenos empresários etc. Os
sanscúlottes eram organizados, principalmente nas "seções" de Paris e
nos clubes políticos locais, e forneciam a principal força de choque da
revolução' - eram eles os verdadeiros manifestantes, agitadores, construtores
de barricadas- Através de jornalistas como Marat e Hébert, através de
porta-vozes locais, eles também formularam uma política, por trás da qual
estava um ideal social contraditório e vagamente definido, que combinava o
respeito pela (pequena) propriedade privada com a hostilidade aos ricos,
trabalho garantido pelo governo, salários e segurança social para o homem
pobre, uma democracia extremada, de igualdade e de liberdade, localizada e
direta. Na verdade, os sanscúlottes eram um ramo daquela importante e universal
tendência política que procurava expressar os interesses da grande massa de
"pequenos homens" que existia entre os pólos do "burguês" e
do "proletário", frequentemente talvez mais próximos deste do que
daquele porque eram, afinal, na maioria pobres. Esta tendência pode ser
observada nos Estados Unidos (sob a forma de uma democracia jeffersoniana e
jacksoniana, ou populismo), na Grã-Bretanha (radicalismo), na França (com os
antecessores dos futuros "republicanos" e radicais-socialistas), na
Itália (com os mazzinianos e os garibaldinos) e em toda parte. Na maioria das
vezes, ela costumou se colocar, nas épocas pós-revolucionárias, como uma ala
esquerdista do liberalismo da classe média, mas relutante em abandonar o antigo
princípio de que não há inimigos na esquerda, e pronta, em tempos de crise, a
se rebelar contra "a muralha de dinheiro", "os monarquistas
econômicos" ou "a cruz de ouro que crucifica a humanidade". Mas
o movimento dos sanscúlottes também não forneceu nenhuma alternativa real. O
seu ideal, um passado dourado de aldeões e pequenos artesãos ou um futuro
dourado de pequenos fazendeiros e artífices não perturbados por banqueiros e
milionários, era irrealizável. A história se movia silenciosamente contra eles.
O máximo que podiam fazer - e isto eles conseguiram em 1793-4 - era erguer
obstáculos à sua passagem, os quais dificultaram o crescimento econômico
francês daquela época até quase a atual. De fato, o sansculotismo foi um fenômeno
tão desamparado que seu próprio nome está praticamente esquecido, ou só é
lembrado como sinônimo do jacobinismo que lhe deu liderança no Ano II.
HOBSBAWM. Eric - J. A ERA DAS REVOLUÇÕES - 8ª edição - pg. 71 a 82 - Ed. Paz e Terra
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