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domingo, 5 de agosto de 2012

Revolução Francesa


TEXTO SOBRE REVOLUÇÃO FRANCESA DE AUTORIA DE ERIC HOBSBAWN


Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã-Bretanha forneceu o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que rompeu com as estruturas socioeconômicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas ideias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes, e a política europeia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1917 foi em grande parte a luta a favor e contra os princípios de 1789, ou os ainda mais incendiários de 1793. A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as ideias europeias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução Francesa.
O final do século XVIII, como vimos, foi uma época de crise para os velhos regimes da Europa e seus sistemas econômicos, e suas últimas décadas foram cheias de agitações políticas, às vezes chegando a ponto da revolta, e de movimentos coloniais em busca de autonomia, às vezes atingindo o ponto da secessão: não só nos EUA (1776-83) mas também na Irlanda (1782-4), na Bélgica e em Liège (1787-90), na Holanda (1783-7), em Genebra e até
mesmo - conforme já se discutiu- na Inglaterra (1779). A quantidade de agitações políticas é tão grande que alguns historiadores mais recentes falaram de uma "era da revolução democrática", em que a Revolução Francesa foi apenas um exemplo, embora o mais dramático e de maior alcance e repercussão '.
 Na medida em que a crise do velho regime não foi puramente um fenômeno francês, há algum peso nestas observações. Igualmente, pode-se argumentar que a Revolução Russa de 1917 (que ocupa uma posição de importância análoga em nosso século) foi meramente o mais dramático de toda uma série de movimentos semelhantes, tais como os que - alguns anos antes de 1917 - finalmente puseram fim aos antigos impérios turco e chinês. Ainda assim, há aí um equívoco. A Revolução Francesa pode não ter sido um fenômeno isolado, mas foi muito mais fundamental do que os outros fenômenos contemporâneos e suas consequências foram portanto mais profundas. Em primeiro lugar, ela se deu no mais populoso e poderoso Estado da Europa (não considerando a Rússia). Em 1789, cerca de um em cada cinco europeus era francês. Em segundo lugar, ela foi, diferentemente de toda as revoluções que a precederam e a seguiram, uma revolução social de massa, e incomensuravelmente mais radical do que qualquer levante comparável. Não é um fato meramente acidental que os revolucionários americanos e os jacobinos britânicos que emigraram para a França devido a suas simpatias políticas tenham sido vistos como moderados na França. Tom Paine era um extremista na Grã-Bretanha e na América; mas em Paris ele estava entre os mais moderados dos girondinos. Resultaram das revoluções americanas, grosseiramente falando, países que continuaram a ser o que eram, somente sem o controle político dos britânicos, espanhóis e portugueses. O resultado da Revolução Francesa foi que a era de Balzac substituiu a era de Mme. Dubarry.
Em terceiro lugar, entre todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas ideias de fato o revolucionaram. A revolução americana foi um acontecimento crucial na história americana, mas (exceto nos países diretamente envolvidos nela ou por ela) deixou poucos traços relevantes em outras partes. A Revolução Francesa é um marco em todos os países. Suas repercussões, ao contrário daquelas da revolução americana, ocasionaram os levantes que levaram à libertação da América Latina depois de 1808. Sua influência direta se espalhou até Bengala, onde Ram Mohan Roy foi inspirado por ela a fundar o primeiro movimento de reforma hindu, predecessor do moderno nacionalismo indiano. (Quando visitou a Inglaterra em 1830, ele insistiu em viajar num navio francês para demonstrar o entusiasmo que tinha pelos princípios da Revolução.) A Revolução Francesa foi, como se disse bem, "o primeiro grande movimento de ideias da cristandade ocidental que teve qualquer efeito real sobre o mundo islâmico", e isto quase que de imediato. Por volta da metade do século XIX, a palavra turca vatan, que até então simplesmente descrevia o local de nascimento ou a residência de um homem, tinha começado a se transformar, sob sua influência, em algo parecido com patrie, o termo "liberdade", antes de 1800 sobretudo uma expressão legal que denotava o oposto de "escravidão", tinha começado a adquirir um novo conteúdo político. Sua influência direta é universal, pois ela forneceu o padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes, suas lições (interpretadas segundo o gosto de cada um) tendo sido incorporadas ao socialismo e ao comunismo modernos.
A Revolução Francesa é assim a revolução do seu tempo, e não apenas uma, embora a mais proeminente, do seu tipo. E suas origens devem portanto ser procuradas não meramente em condições gerais da Europa, mas sim na situação específica da França. Sua peculiaridade é talvez melhor ilustrada em termos internacionais. Durante todo o século XVIII a França foi o maior rival econômico da Grã-Bretanha. Seu comércio externo, que se multiplicou quatro vezes entre 1720 e 1780, causava ansiedade; seu sistema colonial foi em certas áreas (como nas índias Ocidentais) mais dinâmico que o britânico. Mesmo assim a França não era uma potência como a Grã-Bretanha, cuja política externa já era substancialmente determinada pelos interesses da expansão capitalista. Ela era a mais poderosa, e sob vários aspectos a mais típica, das velhas e aristocráticas monarquias absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais ascendentes era mais agudo na franca do que em outras partes.
As novas forças sabiam muito precisamente o que queriam. Turgot, o economista fisiocrata, lutou por uma exploração eficiente da terra, por um comércio e uma empresa livres, por uma administração eficiente e padronizada de um único território nacional homogêneo, pela abolição de todas as restrições e desigualdades sociais que impediam o desenvolvimento dos recursos nacionais e por uma administração e taxação racionais e imparciais. Ainda assim, sua tentativa de aplicação desse programa como primeiro-ministro no período 1774-6 fracassou lamentavelmente, e o fracasso é característico. Reformas desse tipo, em doses modestas, não eram incompatíveis com as monarquias absolutas nem tampouco mal recebidas. Pelo contrário, uma vez que as fortaleciam, tiveram, como já vimos uma ampla difusão nessa época entre os chamados "déspotas esclarecidos". Mas na maioria dos países de "despotismo esclarecido" essas reformas ou eram inaplicáveis, e portanto meros floreios teóricos, ou então improváveis de mudar o caráter geral de suas estruturas político-sociais; ou ainda fracassaram em face da resistência das aristocracias locais e de outros interesses estabelecidos, deixando o país recair em uma versão um pouco mais limpa do seu antigo Estado. Na França elas fracassaram mais rapidamente do que em outras partes, pois a resistência dos interesses estabelecidos era mais efetiva. Mas os resultados deste fracasso foram mais catastróficos para a monarquia; e as forças da mudança burguesa eram fortes demais para cair na inatividade. Elas simplesmente transferiram suas esperanças de uma monarquia esclarecida para o povo ou a "nação".
Não obstante, uma generalização desta ordem não nos leva muito longe na compreensão de por que a revolução eclodiu quando eclodiu, e por que tomou aquele curso notável. Para isso, é mais útil considerarmos a chamada "reação feudal" que realmente forneceu a centelha que fez explodir o barril de pólvora da França.
As 400 mil pessoas aproximadamente que, entre os 23 milhões de franceses, formavam, a nobreza, a inquestionável "primeira linha" da nação, embora não tão absolutamente a salvo da intromissão das linhas menores como na Prússia e outros lugares, estavam bastante seguras. Elas gozavam de consideráveis privilégios, inclusive de isenção de vários impostos (mas não de tantos quanto o clero, mais bem organizado), e do direito de receber tributos feudais. Politicamente sua situação era menos brilhante. A monarquia absoluta, conquanto inteiramente aristocrática e até mesmo feudal no seu ethos, tinha destituído os nobres de sua independência política e responsabilidade e reduzido ao mínimo suas velhas instituições representativas "estados" e parlements. O fato continuou a se agravar entre a mais alta aristocracia e entre a noblesse de robe mais recente, criada pelos reis para vários fins, principalmente financeiros e administrativos; uma classe média governamental enobrecida que expressava tanto quanto podia o duplo descontentamento dos aristocratas e dos burgueses através das assembleias e cortes de justiça remanescentes. Economicamente as preocupações dos nobres não eram absolutamente desprezíveis. Guerreiros e não profissionais ou empresários por nascimento c tradição - os nobres eram até mesmo formalmente impedidos de exercer um oficio ou profissão - eles dependiam da renda de suas propriedades, ou, se pertencessem à minoria privilegiada de grandes nobres ou cortesãos, de casamentos milionários, pensões, presentes ou sinecuras da corte. Mas os gastos que exigia o status de nobre eram grandes e cada vez maiores, e suas rendas caíam - já que eram raramente administradores inteligentes de suas fortunas, se é que de alguma forma as conseguiam administrar. A inflação tendia a reduzir o valor de rendas fixas, como aluguéis.
Era, portanto, natural que os nobres usassem seu bem principal, os privilégios reconhecidos. Durante todo o século XVIII, na França como em tantos outros países, eles invadiram decididamente os postos oficiais que a monarquia absoluta preferira preencher com homens da classe média, politicamente inofensivos e tecnicamente competentes. Por volta da década de 1780, eram necessários quatro graus de nobreza até para comprar uma patente no exército, todos os bispos eram nobres e até mesmo as intendências, a pedra angular da administração real, tinham sido retomadas por eles. Consequentemente, a nobreza não só exasperava os sentimentos da classe média por sua bem-sucedida competição por postos oficiais, mas também corroia o próprio Estado através da crescente tendência de assumir a administração central e provinciana. De maneira semelhante, eles - e especialmente os cavalheiros provincianos mais pobres que tinham poucos outros recursos - tentaram neutralizar o declínio de suas rendas usando ao máximo seus consideráveis direitos feudais para extorquir dinheiro (ou mais raramente, serviço) do campesinato. Toda uma profissão, a dos feudistas, nasceu para reviver os direitos obsoletos desse tipo ou então para aumentar ao máximo o lucro dos existentes. Seu mais celebrado membro, Gracchus Babeuf, viria a se tornar o líder da primeira revolta comunista da história moderna, em 1796. Consequentemente, a nobreza não só exasperava a classe média mas também o campesinato.
A situação desta classe enorme, compreendendo talvez 80% de todos os franceses, estava longe de ser brilhante. De fato os camponeses eram em geral livres e não raro proprietários de terras. Em quantidade efetiva, as propriedades nobres cobriam somente um quinto da terra, as propriedades do clero talvez cobrissem outros 6%, com variações regionais.
Assim é que na diocese de Montpellier os camponeses já possuíam de 38 a 40% da terra, a burguesia de 18 a 19%, os nobres de 15 a 16% e o clero de 3 a 4%, enquanto um quinto era de terras comuns. Na verdade, entretanto, a grande maioria não tinha terras ou tinha uma quantidade insuficiente, deficiência esta aumentada pelo atraso técnico dominante; e a fome geral de terra foi intensificada pelo aumento da população. Os tributos feudais, os dízimos e as taxas tiravam uma grande e cada vez maior proporção da renda do camponês, a inflação reduzia o valor do resto. Pois só a minoria dos camponeses que tinha um constante excedente para vendas se beneficiava dos preços crescentes; o resto, de uma maneira ou de outra, sofria, especialmente em tempos de má colheita, quando dominavam os preços de fome. Há pouca dúvida de que nos 20 anos que precederam a Revolução a situação dos camponeses tenha piorado por essas razões.
Os problemas financeiros da monarquia agravaram o quadro.  A estrutura fiscal e administrativa do reino era tremendamente obsoleta, e, como vimos, a tentativa de remediar a situação através das reformas de 1774-6 fracassou, derrotada pela resistência dos interesses estabelecidos encabeçados pelos parlements. Então a França envolveu-se na guerra da independência americana. A vitória contra a Inglaterra foi obtida ao custo da bancarrota final, e assim a revolução americana pôde proclamar-se a causa direta da Revolução Francesa. Vários expedientes foram tentados com sucesso cada vez menor, mas sempre longe de uma reforma fundamental que, mobilizando a considerável capacidade tributável do país, pudesse enfrentar uma situação em que os gastos excediam a renda em pelo menos 20% e não havia quaisquer possibilidades de economias efetivas. Pois embora a extravagância de Versailles tenha sido constantemente culpada pela crise, os gastos da corte só significavam 6% dos gastos totais em 1788. A guerra, a marinha e a diplomacia constituíam um quarto, e metade era consumida pelo serviço da dívida existente. A guerra e a divida - a guerra americana e sua dívida - partiram a espinha da monarquia.
A crise do governo deu à aristocracia e aos parlements a sua chance. Eles se recusavam a pagar pela crise se seus privilégios não fossem estendidos. A primeira brecha no fronte do absolutismo foi uma "assembleia de notáveis" escolhidos a dedo, mas assim mesmo rebeldes, convocada em 1787 para satisfazer as exigências governamentais. A segunda e decisiva brecha foi a desesperada decisão de convocar os Estados Gerais, a velha assembleia feudal do reino, enterrada desde 1614. Assim, a Revolução começou como uma tentativa aristocrática de recapturar o Estado. Esta tentativa foi mal calculada por duas razões: ela subestimou as intenções independentes do "Terceiro Estado" - a entidade fictícia destinada a representar todos os que não eram nobres nem membros do clero, mas de fato dominada pela classe média - e desprezou a profunda crise socioeconômica no meio da qual lançava suas exigências políticas.
A Revolução Francesa não foi feita ou liderada por um partido ou movimento organizado, no sentido moderno, nem por homens que estivessem tentando levar a cabo um programa estruturado. Nem mesmo chegou a ter "líderes" do tipo que as revoluções do século XX nos têm apresentado, até o surgimento da figura pós-revolucionária de Napoleão. Não obstante, um surpreendente consenso de idéias gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário uma unidade efetiva. O grupo era a "burguesia"; suas ideias eram as do liberalismo clássico, conforme formuladas pelos "filósofos" e "economistas" e difundidas pela maçonaria e associações informais. Até este ponto os "filósofos" podem ser, com justiça, considerados responsáveis pela Revolução.  Ela teria ocorrido sem eles; mas eles provavelmente constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo. Em sua forma mais geral, a ideologia de 1789 era a maçônica, expressa com tão sublime inocência na Flauta Mágica de Mozart (1791), uma das primeiras grandes obras de arte propagandísticas de uma época em que as mais altas realizações artísticas pertenceram tantas vezes à propaganda. Mais especificamente, as exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. "Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis", dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais, ainda que "somente no terreno da utilidade comum". A propriedade privada era um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável. Os homens eram iguais perante a lei e as profissões estavam igualmente abertas ao talento; mas, se a corrida começasse sem handicaps, era igualmente entendido como fato consumado que os corredores não terminariam juntos. A declaração afirmava (como contrário à hierarquia nobre ou absolutismo) que "todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das leis"; mas "pessoalmente ou através de seus representantes". E a assembleia representativa que ela vislumbrava como o órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembleia democraticamente eleita, nem o regime nela implícito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também advogassem "esta causa". Mas no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários.
Entretanto, oficialmente esse regime expressaria não apenas seus interesses de classe, mas também a vontade geral do "povo", que era por sua vez (uma significativa identificação) "a nação francesa". O rei não era mais Luís, pela Graça de Deus, Rei de França e Navarra, mas Luís, pela Graça de Deus e do direito constitucional do Estado, Rei dos franceses. "A fonte de toda a soberania", dizia a Declaração, "reside essencialmente na nação". E a nação, conforme disse o Abade Sieyès, não reconhecia na terra qualquer direito acima do seu próprio e não aceitava qualquer lei ou autoridade que não a sua - nem a da humanidade como um todo, nem a de outras nações. Sem dúvida, a nação francesa, como suas subsequentes imitadoras, não concebeu inicialmente que seus interesses pudessem se chocar com os de outros povos, mas, pelo contrário, via a si mesma como inauguradora ou participante de um movimento de libertação geral dos povos contra a tirania. Mas de fato a rivalidade nacional (por exemplo, a dos homens de negócios franceses com os ingleses) e a subordinação nacional (por exemplo, a das nações conquistadas ou libertadas face aos interesses da grande nation) estavam implícitas no nacionalismo ao qual a burguesia de 1789 deu sua primeira expressão oficial. "O povo" identificado com "a nação" era um conceito revolucionário; mais revolucionário do que o programa liberal-burguês que pretendia expressá-lo. Mas era também uma faca de dois gumes.
Visto que os camponeses e os trabalhadores pobres eram analfabetos, politicamente simples ou imaturos, e o processo de eleição, indireto, 610 homens, a maioria desse tipo, foram eleitos para representar o Terceiro Estado. A maioria da assembleia era de advogados que desempenhavam um papel econômico importante na França provinciana; cerca de 100 representantes eram capitalistas e homens de negócios. O Terceiro Estado tinha lutado acirradamente, e com sucesso, para obter uma representação tão grande quanto a da nobreza e a do clero juntas, uma ambição moderada para um grupo que oficialmente representava 95% do povo. E agora lutava com igual determinação pelo direito de explorar sua maioria potencial
de votos, transformando os Estados Gerais numa assembleia de deputados que votariam individualmente, ao contrário do campo feudal tradicional que deliberava e votava por "ordens" ou "estados", uma situação em que a nobreza e o clero podiam sempre derrotar o Terceiro Estado. Foi aí que se deu a primeira vitória revolucionária. Cerca de seis semanas após a abertura dos Estados Gerais, os Comuns, ansiosos por evitar a ação do rei, dos nobres e do clero, constituíram-se eles mesmo, e todos os que estavam preparados para se juntarem a eles nos termos que ditassem, em Assembleia Nacional com o direito de reformar a constituição. Foi feita uma tentativa contra-revolucionária que os levou a formular suas exigências praticamente nos termos da Câmara dos Comuns inglesa. O absolutismo atingia seus estertores, conforme Mirabeau, um brilhante e desacreditado ex-nobre, disse ao Rei: "Majestade, vós sois um estranho nesta assembleia e não tendes o direito de se pronunciar aqui".


O Terceiro Estado obteve sucesso, contra a resistência unificada do rei e das ordens privilegiadas, porque representava não apenas as opiniões de uma minoria militante e instruída, mas também as de forças bem mais poderosas: os trabalhadores pobres das cidades, e especialmente de Paris, e em suma, também, o campesinato revolucionário. O que transformou uma limitada agitação reformista em uma revolução foi o fato de que a conclamação dos Estados Gerais coincidiu com uma profunda crise sócio-econômica. Os últimos anos da década de 1780 tinham sido, por uma complexidade de razões, um período de grandes dificuldades praticamente para todos os ramos da economia francesa. Uma má safra em 1788 (e 1789) e um inverno muito difícil tornaram aguda a crise. As más safras faziam sofrer o campesinato, pois significavam que enquanto os grandes produtores podiam vender cereais a preços de fome, a maioria dos homens em suas insuficientes propriedades tinha provavelmente que se alimentar do trigo reservado para o plantio ou comprar alimentos àqueles preços, especialmente nos meses imediatamente anteriores à nova safra (maio-julho). Obviamente as más safras faziam sofrer também os pobres das cidades, cujo custo de vida - o pão era o principal alimento - podia duplicar. Fazia-os sofrer ainda mais, porque o empobrecimento do campo reduzia o mercado de manufaturas e portanto também produzia uma depressão industrial. Os pobres do interior ficavam assim desesperados e envolvidos em distúrbios e banditismo; os pobres das cidades ficavam duplamente desesperados já que o trabalho cessava no exato momento em que o custo de vida subia vertiginosamente. Em circunstâncias normais, teria ocorrido provavelmente pouco mais que agitações cegas. Mas em 1788 e 1789 uma convulsão de grandes proporções no reino c uma campanha de propaganda e eleição deram ao desespero do povo uma perspectiva política. E lhe apresentaram a tremenda e abaladora ideia de se libertar da pequena nobreza e da opressão. Um povo turbulento se colocava por trás dos deputados do Terceiro Estado.
A contra-revolução transformou um levante de massa em potencial em um levante efetivo. Sem dúvida era natural que o velho regime oferecesse resistência, se necessário com força armada, embora o exército não fosse mais totalmente de confiança. (Só sonhadores irrealistas suporiam que Luís XVI pudesse ter aceito a derrota e imediatamente ser transformado em um monarca constitucional, mesmo que ele tivesse sido um homem menos desprezível e estúpido do que era, casado com uma mulher menos irresponsável e com menos miolos de galinha, e preparado para escutar conselheiros menos desastrosos.) De fato a contra-revolução mobilizou contra si as massas de Paris, já famintas, desconfiadas e militantes. O resultado mais sensacional de sua mobilização foi a queda da Bastilha, uma prisão estatal que simbolizava a autoridade real e onde os revolucionários esperavam encontrar armas. Em tempos de revolução nada é mais poderoso do que a queda de símbolos. A queda da Bastilha, que fez do 14 de julho a festa nacional francesa, ratificou a queda do despotismo e foi saudada em todo o mundo como o princípio de libertação. Até mesmo o austero filósofo Emanuel Kant, de Koenigsberg, de quem se diz que os hábitos eram tão regrados que os cidadãos daquela cidade acertavam por ele os seus relógios, postergou a hora de seu passeio vespertino ao receber a notícia, de modo que convenceu a cidade de Koenigsberg de que um fato que sacudiu o mundo tinha deveras ocorrido. O que é mais certo é que a queda da Bastilha levou a revolução para as cidades provincianas e para o campo.
As revoluções camponesas são movimentos vastos, disformes, anônimos, mas irresistíveis. O que transformou uma epidemia de inquietação camponesa em uma convulsão irreversível foi a combinação dos levantes das cidades provincianas com uma onda de pânico de massa, que se espalhou de forma obscura mas rapidamente por grandes regiões do país: o chamado Grande Medo {Grande Peur), de fins de julho e princípio de agosto de 1789. Três semanas após o 14 de julho, a estrutura social do feudalismo rural francês e a máquina estatal da França Real ruíam em pedaços. Tudo o que restou do poderio estatal foi uma dispersão de regimentos pouco confiáveis, uma Assembleia Nacional sem força coercitiva e uma multiplicidade de administrações municipais ou provincianas da classe média que logo montaram "Guardas Nacionais" burguesas segundo o modelo de Paris. A classe média e a aristocracia imediatamente aceitaram o inevitável: todos os privilégios feudais foram oficialmente abolidos embora, quando a situação política se acalmou, fosse fixado um preço rígido para sua remissão. O Feudalismo só foi finalmente abolido em 1793. No final de agosto, a revolução tinha também adquirido seu manifesto formal, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em contrapartida, o rei resistiu com sua costumeira estupidez, e setores revolucionários da classe média, amedrontados com as implicações sociais do levante de massa começaram a pensar que era chegada a hora do conservadorismo.
Em resumo, a principal forma da política revolucionária burguesa francesa e de todas as subsequentes estava agora bem clara. Esta dramática dança dialética dominaria as gerações futuras. Repetidas vezes veremos moderados reformadores da classe média mobilizando as massas contra a resistência obstinada ou a contra-revolução. Veremos as massas indo além dos objetivos todos rumo a suas próprias revoluções sociais, e os moderados, por sua vez, dividindo-se em um grupo conservador, dai em diante fazendo causa comum com os reacionários, e um grupo de esquerda, determinado a perseguir o resto dos objetivos moderados, ainda não alcançados, com o auxílio das massas, mesmo com o risco de perder o controle sobre elas. E assim por diante, com repetições e variações do modelo resistência - mobilização de massa - inclinação para a esquerda - rompimento entre os moderados - inclinação para a direita - até que o grosso da classe média passe daí em diante para o campo conservador, ou seja, derrotado pela revolução social. Na maioria das revoluções burguesas subsequentes, os liberais moderados viriam a retroceder, ou transferir-se para a ala conservadora, num estágio bastante inicial. De fato, no século XIX vemos de modo crescente (mais notadamente na Alemanha) que eles se tornaram absolutamente relutantes em começar uma revolução, por medo de suas incalculáveis consequências, preferindo um compromisso com o rei e a aristocracia. A peculiaridade da Revolução Francesa é que uma facção da classe média liberal estava pronta a continuar revolucionária até o, e mesmo além do, limiar da revolução anti-burguesa: eram os jacobinos, cujo nome veio a significar "revolução radical" em toda parte.
Por quê? Em parte, é claro, porque a burguesia francesa não tinha ainda para temer, como os liberais posteriores, a terrível memória da Revolução Francesa. Depois de 1794. ficaria claro para os moderados que o regime jacobino tinha levado a revolução longe demais para os objetivos e comodidades burgueses, exatamente como ficaria claro para os revolucionários que "o sol de 1793", se fosse nascer de novo, teria que brilhar sobre uma sociedade não burguesa. Por outro lado, os jacobinos podiam sustentar o radicalismo porque em sua época não existia uma classe que pudesse fornecer uma solução social coerente como alternativa à deles. Esta classe só surgiu no curso da revolução industrial, com o "proletariado" ou, mais precisamente, com as ideologias e movimentos baseados nele. Na Revolução Francesa, a classe operária e mesmo esta é uma designação imprópria para a massa de assalariados contratados, mas fundamentalmente não industriais -ainda não desempenhava qualquer papel independente. Eles tinham fome, faziam agitações e talvez sonhassem, mas por motivos práticos seguiam os líderes não proletários. O campesinato nunca fornece uma alternativa política para ninguém; apenas, de acordo com a ocasião, uma força quase irresistível ou um obstáculo quase irremovível. A única alternativa para o radicalismo burguês (se excetuarmos pequenos grupos de ideólogos ou militantes impotentes quando destituídos do apoio das massas) eram os "sanscúlottes". um movimento disforme, sobretudo urbano, de trabalhadores pobres, pequenos artesãos, lojistas, artífices, pequenos empresários etc. Os sanscúlottes eram organizados, principalmente nas "seções" de Paris e nos clubes políticos locais, e forneciam a principal força de choque da revolução' - eram eles os verdadeiros manifestantes, agitadores, construtores de barricadas- Através de jornalistas como Marat e Hébert, através de porta-vozes locais, eles também formularam uma política, por trás da qual estava um ideal social contraditório e vagamente definido, que combinava o respeito pela (pequena) propriedade privada com a hostilidade aos ricos, trabalho garantido pelo governo, salários e segurança social para o homem pobre, uma democracia extremada, de igualdade e de liberdade, localizada e direta. Na verdade, os sanscúlottes eram um ramo daquela importante e universal tendência política que procurava expressar os interesses da grande massa de "pequenos homens" que existia entre os pólos do "burguês" e do "proletário", frequentemente talvez mais próximos deste do que daquele porque eram, afinal, na maioria pobres. Esta tendência pode ser observada nos Estados Unidos (sob a forma de uma democracia jeffersoniana e jacksoniana, ou populismo), na Grã-Bretanha (radicalismo), na França (com os antecessores dos futuros "republicanos" e radicais-socialistas), na Itália (com os mazzinianos e os garibaldinos) e em toda parte. Na maioria das vezes, ela costumou se colocar, nas épocas pós-revolucionárias, como uma ala esquerdista do liberalismo da classe média, mas relutante em abandonar o antigo princípio de que não há inimigos na esquerda, e pronta, em tempos de crise, a se rebelar contra "a muralha de dinheiro", "os monarquistas econômicos" ou "a cruz de ouro que crucifica a humanidade". Mas o movimento dos sanscúlottes também não forneceu nenhuma alternativa real. O seu ideal, um passado dourado de aldeões e pequenos artesãos ou um futuro dourado de pequenos fazendeiros e artífices não perturbados por banqueiros e milionários, era irrealizável. A história se movia silenciosamente contra eles. O máximo que podiam fazer - e isto eles conseguiram em 1793-4 - era erguer obstáculos à sua passagem, os quais dificultaram o crescimento econômico francês daquela época até quase a atual. De fato, o sansculotismo foi um fenômeno tão desamparado que seu próprio nome está praticamente esquecido, ou só é lembrado como sinônimo do jacobinismo que lhe deu liderança no Ano II. 



HOBSBAWM. Eric - J. A ERA DAS REVOLUÇÕES -  8ª edição - pg. 71 a 82 - Ed. Paz e Terra

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