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segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Revolução Russa


A REVOLUÇÃO RUSSA SEGUNDO ERIC HOBSBAWM

A revolução foi a filha da guerra no século 20: especificamente a Revolução Russa de 1917, que criou a União Soviética, transformada em superpotência pela segunda fase da Guerra dos Trinta e Um Anos, porém mais geralmente a revolução como uma constante global na história do século. A guerra sozinha não conduz necessariamente a crise, colapso e revolução nos países beligerantes.  Na verdade, antes de 1914 predominava a crença contrária, pelo menos em relação a regimes estabelecidos com legitimidade tradicional.  Napoleão I queixava-se amargamente de que o imperador da Áustria podia sobreviver feliz a uma centena de batalhas perdidas, como o rei da Prússia sobrevivera ao desastre e à perda de metade de suas terras, enquanto ele próprio, filho da Revolução Francesa, estaria em risco após uma única derrota.  Mas as tensões da guerra total do século 20 sobre os Estados e povos nela envolvidos foram tão esmagadoras e sem precedentes que eles se viram esticados até quase seus limites e, quase sempre, até o ponto de ruptura. Só os EUA saíram das guerras mundiais como tinham entrado, apenas um pouco mais fortes. Para todos os demais, o fim das guerras significou levantes. (...)
Durante grande parte do Breve Século 20, o comunismo soviético proclamou-se um sistema alternativo e superior ao capitalismo, e destinado pela história a triunfar sobre ele. E durante grande parte desse período, até mesmo muitos daqueles que rejeitavam suas pretensões de superioridade estavam longe de convencidos de que ele não pudesse triunfar. E com a significativa exceção dos anos de 1933 a 1945 (ver capítulo 5) a política internacional de todo o Breve Século 20 após a Revolução de Outubro pode ser mais bem entendida como uma luta secular de forças da velha ordem contra a revolução social, tida como encarnada nos destinos da União Soviética e do comunismo internacional, a eles aliada ou deles dependente.
À medida que avançava o Breve Século 20, essa imagem da política mundial como um duelo entre as forças de dois sistemas sociais rivais (cada um, após 1945, mobilizado por trás de uma superpotência a brandir armas de destruição global) se tornou cada vez mais irrealista. Na década de 1980, tinha tão pouca relevância para a política internacional quanto as Cruzadas. Mas podemos entender como veio a existir. Pois, mais completa e inflexivelmente até mesmo que a Revolução Francesa em seus dias jacobinos, a Revolução de Outubro se via menos como um acontecimento nacional que ecumênico. Foi feita não para proporcionar liberdade e socialismo à Rússia, mas para trazer a revolução do proletariado mundial. Na mente de Lenin e seus camaradas, a vitória bolchevique na Rússia era basicamente uma batalha na campanha para alcançar a vitória do bolchevismo numa escala global mais ampla, e dificilmente justificável a não ser como tal.
Que a Rússia czarista estava madura para a revolução, merecia muitíssimo uma revolução, e na verdade essa revolução certamente derrubaria o czarismo, já fora aceito por todo observador sensato do panorama mundial desde a década de 1870 (ver A era dos impérios, capítulo 12). Após 1905 e 6, quando o czarismo foi de fato posto de joelhos pela revolução, ninguém duvidava seriamente disso. Alguns historiadores, em retrospecto, dizem que a Rússia czarista, não fossem o acidente da Primeira Guerra Mundial e a Revolução Bolchevique, teria evoluído para uma florescente sociedade industrial liberal capitalista, e estava a caminho disso, mas seria necessário um microscópio para detectar profecias desse tipo feitas antes de 1914. Na  verdade,  o  regime  czarista  mal  se  recuperara  da revolução de 1905 quando, indeciso e incompetente  como sempre,  se  viu mais uma vez açoitado por uma onda de descontentamento social em rápido crescimento. Tirando a firme lealdade do exército, polícia e serviço público nos últimos meses antes da eclosão da guerra, o país parecia mais uma vez à beira de uma erupção. Na verdade, como em tantos dos países beligerantes, o entusiasmo e patriotismo das massas após a eclosão da guerra desarmaram a situação política embora, no caso da Rússia, não por muito tempo. Em 1915, os problemas de governo do czar pareciam mais uma vez insuperáveis. Nada pareceu menos surpreendente e inesperado que a revolução de março de 1917, que derrubou a monarquia russa e foi universalmente saudada por toda a opinião pública ocidental, com exceção dos mais empedernidos reacionários tradicionalistas.  E, no entanto, com exceção dos românticos que viam uma estrada reta levando das práticas coletivas da comunidade aldeã russa a um futuro socialista, todos tinham como igualmente certo que uma revolução da Rússia não podia e não seria socialista.  As condições para tal transformação simplesmente não estavam presentes num país camponês que era um sinônimo de pobreza, ignorância e atraso, e onde o proletariado industrial, o predestinado coveiro do capitalismo de Marx, era apenas uma minúscula minoria, embora estrategicamente localizada. Os próprios revolucionários marxistas russos partilhavam dessa opinião.  Por si mesma, a derrubada do czarismo e do sistema de latifundiários iria produzir, e só se poderia esperar que produzisse, uma revolução burguesa. A luta de classes entre a burguesia e o proletariado (que, segundo Marx, só podia ter um resultado) continuaria então sob as novas condições políticas.  Claro, a Rússia não existia isolada, e uma revolução naquele enorme país, que se estendia das fronteiras do Japão às da Alemanha, e cujo governo era parte do punhado de potências mundiais que dominava a situação mundial, não poderia deixar de ter grandes conseqüências internacionais. O próprio Karl Marx, no fim da vida, tinha esperado que a Revolução Russa agisse como uma espécie de detonador, disparando a revolução proletária nos países ocidentais industrialmente mais desenvolvidos, onde estavam presentes as condições para uma revolução socialista proletária.  Como veremos, lá pelo fim da Primeira Guerra Mundial, pareceu que era exatamente isso que ia acontecer.
Havia mais uma complicação. Se a Rússia não estava pronta para a revolução socialista proletária dos marxistas, tampouco estava para a revolução burguesa liberal.  Mesmo os que não queriam mais que isso tinham de encontrar um meio de fazê-lo sem depender das pequenas e fracas forças da classe média liberal russa, uma minúscula minoria sem posição moral, apoio público ou tradição institucional de governo representativo em que pudesse encaixar-se. Os Cadetes, partido do liberalismo burguês, tinham menos de 2,5% dos deputados da Assembléia Constitucional livremente eleita (e logo dissolvida) de 1917 e 8. Uma Rússia liberal burguesa teria de ser conquistada pelo levante de camponeses e operários que não sabiam nem se importavam com o que era isso, sob a liderança de partidos revolucionários que queriam outra coisa, ou o que era mais provável, as forças que faziam a revolução iriam além de seu estágio liberal-burguês, passando para uma mais radical revolução permanente (para usar a expressão adotada por Marx e revivida durante a revolução de 1905 pelo jovem Trotski).  Em 1917, Lenin, cujas esperanças não tinham ido muito além de uma Rússia democrático-burguesa em 1905, também concluiu desde o início que o cavalo liberal não era um dos corredores no páreo revolucionário russo.  Era uma avaliação realista. Contudo, em 1917 estava tão claro para ele quanto para todos os outros marxistas russos e não russos que simplesmente não existiam na Rússia as condições para uma revolução socialista.   Para os revolucionários marxistas na Rússia, sua revolução tinha de espalhar-se em outros lugares.
Mas nada parecia mais provável de que era isso que iria acontecer mesmo, porque a Grande Guerra acabou em generalizado colapso político e crise revolucionária, sobretudo nos Estados beligerantes derrotados. Em 1918, todos os quatro governantes das potências derrotadas (Alemanha, Áustria Hungria, Turquia e Bulgária) perderam seus tronos, assim como o czar da Rússia, derrotada pela Alemanha, que já caíra em 1917.  Além disso, a inquietação social, equivalendo quase a uma revolução na Itália, abalou até mesmo os beligerantes europeus do lado vencedor.
Como vimos, as sociedades da Europa beligerante começaram a vergar sob as extraordinárias pressões da guerra em massa. Baixara a onda inicial de patriotismo que se seguira à eclosão da guerra. Em 1916, o cansaço de guerra transformava-se em hostilidade surda e calada em relação a uma matança aparentemente interminável e incerta, que ninguém parecia ter vontade de acabar. Enquanto, em 1914, os adversários da guerra se sentiam desamparados e isolados, em 1916 podiam sentir que falavam pela maioria. O quanto a situação mudara dramaticamente foi demonstrado quando, em 28 de outubro de 1916, Friedrich Adler, filho do líder e fundador do partido socialista austríaco, assassinou deliberadamente e a sangue frio o primeiro ministro austríaco, conde Stürgkh, num café de Viena era uma época de inocência, antes dos homens da segurança como um gesto público contra a guerra.
O sentimento antiguerra naturalmente elevou o perfil político dos socialistas, que cada vez mais reverteram à oposição que seus movimentos faziam à guerra antes de 1914. Na verdade, alguns partidos (por exemplo, na Rússia, na Sérvia e na Grã-Bretanha o Partido Trabalhista Independente) jamais deixaram de opor-se a ela, e, mesmo onde os partidos socialistas apoiaram a guerra, seus mais eloqüentes opositores se encontravam em suas fileiras. Ao mesmo tempo, e em todos os grandes países beligerantes, o movimento trabalhista organizado nas vastas indústrias de armamentos tornou-se um centro de militância industrial e antiguerra. Os ativistas sindicais de escalões inferiores nessas fábricas, homens qualificados em forte posição de barganha (delegados de fábrica na Grã-Bretanha; Betrjebsobleute" na Alemanha), tornaram-se sinônimos de radicalismo. Os artífices e mecânicos das novas marinhas de alta tecnologia, pouco diferentes de fábricas flutuantes, moveram-se na mesma direção. Tanto na Rússia quanto na Alemanha, as principais bases navais (Kronstadt; Kiel) iriam tornar-se grandes centros de revolução, e mais tarde um motim naval francês no mar Negro deteria a intervenção francesa contra os bolcheviques na Guerra Civil russa de 1918-1920. A rebelião contra a guerra adquiriu assim concentração e atuação. Não admira que os censores austro-húngaros, controlando a correspondência de seus soldados, passassem a notar uma mudança de tom. "Se ao menos o bom Deus nos trouxesse a paz tomou-se "Para nós já chega” ou “Dizem que os socialistas vão fazer a paz”.
Não surpreende, portanto, que, mais uma vez segundo os censores habsburgos, a Revolução Russa fosse o primeiro acontecimento político desde o inicio da guerra a repercutir nas cartas até mesmo de esposas de camponeses e operários.  E não surpreende, sobretudo depois que a Revolução de Outubro levou os bolcheviques de Lenin ao poder, que os desejos de paz e revolução social se fundissem: um terço da amostragem de cartas censuradas entre novembro de 1917 e março de 1918 esperava obter a paz via Rússia, um terço via revolução, e outros 20% via uma combinação das duas. Que uma revolução na Rússia teria grande repercussão internacional, sempre foi claro desde que a primeira revolução, em 1905-1906, abalara os antigos impérios sobreviventes na época, da Áustria-Hungria até a China, passando por Turquia e Pérsia (ver A era dos impérios, capítulo 12). Em 1917, toda a Europa se tornara um monte de explosivos sociais prontos para ignição.
A Rússia, madura para a revolução social, cansada de guerra e à beira da derrota, foi o primeiro dos regimes da Europa Central e Oriental a ruir sob as pressões e tensões da Primeira Guerra Mundial.  A explosão era esperada, embora ninguém pudesse prever o momento e ocasião da detonação. Poucas semanas antes da revolução de fevereiro, Lenin ainda se perguntava em seu exílio suíço se viveria para vê-la.  Na verdade, o governo do czar desmoronou quando uma manifestação de operárias (no habitual "Dia da Mulher” do movimento socialista 8 de março) se combinou com um lockout industrial na notoriamente militante metalúrgica Putilov e produziu uma greve geral e a invasão do centro da capital, do outro lado do rio gelado, basicamente para exigir pão.  A fragilidade do regime se revelou quando as tropas do czar, mesmo os leais cossacos de sempre, hesitaram e depois se recusaram a atacar a multidão, e passaram a confraternizar com ela. Quando, após quatro dias de caos, elas se amotinaram, o czar abdicou, sendo substituído por um governo liberal provisório, não sem certa simpatia e mesmo ajuda dos aliados ocidentais da Rússia, que temiam que o desesperado regime do czar saísse da guerra e assinasse uma paz em separado com a Alemanha.  Quatro dias espontâneos e sem liderança na rua puseram fim a um Império. Mais que isso: tão pronta estava a Rússia para a revolução social que as massas de Petrogrado imediatamente trataram a queda do czar como uma proclamação de liberdade, igualdade e democracia direta universais. O feito extraordinário de Lenin foi transformar essa incontrolável onda anárquica popular em poder bolchevique. Assim, em vez de uma Rússia liberal e constitucional voltada para o Ocidente, disposta a combater os alemães, o que resultou foi um vácuo revolucionário: um governo provisório impotente de um lado, e do outro uma multidão de conselhos de base (sovietes) brotando espontaneamente por toda parte, como cogumelos após as chuvas. Estes tinham poder de fato, ou pelo menos poder de veto, mas não tinham idéia do que fazer com ele, ou do que se poderia fazer.  Os vários partidos e organizações revolucionários social-democratas bolcheviques e mencheviques, social-revolucionários, e inúmeras facções menores da esquerda, emergindo da ilegalidade tentaram estabelecer-se nessas assembléias, para coordená-las e converte-las às suas políticas, embora no início só Lenin as visse como a alternativa para o governo (Todo poder aos sovietes).  Contudo, é claro que, quando o czar caiu, uma proporção relativamente pequena do povo russo sabia o que representavam os rótulos dos partidos revolucionários, e os que sabiam em geral não eram capazes de discernir seus apelos rivais. O que sabiam era apenas que não mais aceitavam autoridade nem mesmo a autoridade dos revolucionários que diziam saber mais do que eles.
A reivindicação básica dos pobres da cidade era pão, e a dos operários entre eles, melhores salários e menos horas de trabalho. A reivindicação básica dos 80% de russos que viviam da agricultura era, como sempre, terra. Todos concordavam que queriam o fim da guerra, embora a massa de soldados camponeses que formava o exército não fosse a princípio contra a luta como tal, mas contra a severa disciplina e maltrato de outros soldados. O slogan "Pão, Paz, Terra" conquistou logo crescente apoio para os que o propagavam, em especial os bolcheviques de Lenin, que passaram de um pequeno grupo de uns poucos milhares em março de 1917 para um quarto de milhão de membros no início do verão daquele ano. Ao contrário da mitologia da Guerra Fria, que via Lenin essencialmente como um organizador de golpes, a única vantagem real com que ele e os bolcheviques contavam era a capacidade de reconhecer o que as massas queriam; de conduzir, por assim dizer, por saber seguir. Quando, por exemplo, ele reconheceu que, o contrário do programa socialista, os camponeses queriam uma divisão da terra em fazendas familiares, não hesitou um instante em comprometer os bolcheviques com essa forma de individualismo econômico.
Ao contrário, o Governo Provisório e seus seguidores não souberam reconhecer sua incapacidade de fazer a Rússia obedecer suas leis e decretos. Quando homens de negócios e administradores tentaram restabelecer a disciplina de trabalho, não fizeram mais que radicalizar os trabalhadores. Quando o Governo Provisório insistiu em lançar o exército na ofensiva militar em junho de 1917, o exército estava farto, e os soldados camponeses voltaram para suas aldeias a fim de tomar parte na divisão de terra com os parentes.  A revolução espalhou-se pelas estradas de ferro que os levavam de volta para casa.  Ainda não era o momento para uma queda imediata do Governo Provisório, mas do verão em diante a radicalização se acelerou tanto no exército quanto nas principais cidades, cada vez mais em favor dos bolcheviques.  O campesinato deu apoio esmagador aos herdeiros dos narodniks (ver A era da catástrofe, capítulo 9), os social-revolucionários, embora estes se tornassem uma esquerda mais radical, que se aproximou dos bolcheviques, e em breve se juntou a eles no governo após a Revolução de Outubro.
Quando os bolcheviques até então um partido de operários se viram em maioria nas principais cidades russas, e sobretudo na capital, Petrogrado e Moscou, e depressa ganharam terreno no exército, a existência do Governo Provisório tornou-se cada vez mais irreal; em especial quando teve de apelar às forças revolucionárias na capital para derrotar uma tentativa de golpe contra-revolucionário de um general monarquista em agosto. A onda radicalizada de seus seguidores inevitavelmente empurrou os bolcheviques para a tomada do poder.  Na verdade, quando chegou a hora, mais que tomado, o poder foi colhido. Diz-se que mais gente se feriu na filmagem da grande obra de Einsenstein, Outubro (1927), do que durante a tomada de fato do Palácio de Inverno em 7 de novembro de 1917. O Governo Provisório, sem mais ninguém para defendê-lo, simplesmente se esfumou.
Do momento em que a queda do Governo Provisório se tornou certa, a Revolução de Outubro foi mergulhada em polêmicas. A maioria delas é enganadora.  A verdadeira questão não é se a Revolução, como têm dito historiadores anticomunistas, foi um putsch ou um golpe do fundamentalmente antidemocrático Lenin, mas quem, ou o quê, devia ou podia seguir-se à queda do Governo Provisório. A partir do início de setembro, Lênin tentou não apenas convencer os elementos hesitantes em seu partido de que o poder poderia fugir-lhes com facilidade se não tomado por um plano organizado, durante o tempo possivelmente curto em que estava ao seu alcance, mas talvez com igual urgência responder à pergunta Podem os bolcheviques manter o poder do Estado? se o tomassem.  Que poderia fazer, na verdade, qualquer um que tentasse governar a erupção vulcânica da Rússia revolucionária?  Nenhum outro partido além dos bolcheviques de Lenin estava preparado para enfrentar essa responsabilidade sozinho e o panfleto de Lenin sugere que nem todos os bolcheviques estavam tão determinados quanto ele.  Em vista da situação política favorável em Petrogrado, em Moscou e nos exércitos do Norte, a defesa puramente de curto prazo da tomada do poder já, em vez de esperar outros acontecimentos, era de fato difícil de responder.    A contra-revolução apenas começara. Um governo desesperado, em vez de dar lugar aos sovietes, podia entregar Petrogrado ao exército alemão, já na fronteira norte do que é hoje a Estônia, ou seja, a alguns quilômetros da capital. Além disso, Lenin raramente hesitou em encarar de frente os atos mais sombrios. Se os bolcheviques não tomassem o poder, "uma onda de verdadeira anarquia podia tornar-se mais forte do que nós. Em última análise, o argumento de Lenin não podia deixar de convencer seu partido. Se um partido revolucionário não tomasse o poder quando o momento e as massas o pediam, em que ele diferia de um partido não revolucionário?
A perspectiva em longo prazo é que era problemática, mesmo supondo-se que o poder tomado em Petrogrado e Moscou pudesse ser estendido ao resto da Rússia e ali mantido contra a anarquia e a contra-revolução. O programa do próprio Lenin, de empenhar o novo governo do soviete (isto é, basicamente Partido Bolchevique) na transformação socialista da República russa, era essencialmente uma aposta na transformação da Revolução Russa em revolução mundial, ou pelo menos européia. Quem como ele disse tantas vezes imaginaria que a vitória do socialismo pode se dar [...] a não ser pela completa destruição da burguesia russa e européia?. Nesse meio tempo, o dever básico, na verdade único, dos bolcheviques era se agüentarem.  O novo regime pouco fez sobre o socialismo, a não ser declarar que esse era seu objetivo, tomar os bancos e declarar o controle dos operários sobre as administrações existentes, isto é, apor o selo oficial ao que já vinham fazendo de qualquer modo desde a Revolução, enquanto os exortava a manterem a produção funcionando. Nada mais tinha a dizer-lhes.
O novo regime se agüentou. Sobreviveu a uma paz punitiva imposta pela Alemanha em Brest-Litowsk, alguns meses antes de os próprios alemães serem derrotados, e que separou a Polônia, as províncias bálticas, a Ucrânia e partes substanciais do Sul e Oeste da Rússia, além de, de facto, a Transcaucásia (a Ucrânia e a Transcaucásia foram recuperadas).  Os aliados não viram motivo para ser mais generosos com o centro da subversão mundial. Vários exércitos e regimes contra-revolucionários (brancos) levantaram-se contra os soviéticos, financiados pelos aliados, que enviaram tropas britânicas, francesas, americanas, japonesas, polonesas, sérvias, gregas e romenas para o solo russo.  Nos piores momentos da brutal e caótica Guerra Civil de 1918 20, a Rússia soviética foi reduzida a uma faixa de território sem saída para o mar, no Norte e no Centro da Rússia, em algum ponto entre a região dos Urais e os atuais Estados bálticos, a não ser pelo estreito dedo exposto de Leningrado, apontado para o golfo da Finlândia.  As únicas vantagens importantes com que o novo regime contava, enquanto improvisava do nada um Exército Vermelho eventualmente vitorioso, eram a incompetência e divisão das briguentas forças brancas, a capacidade destas de antagonizar o campesinato da Grande Rússia, e a bem fundada desconfiança entre as potências ocidentais de que não podiam ordenar com segurança a seus soldados e marinheiros rebeldes que combatessem os bolcheviques. Em fins de 1920, os bolcheviques haviam vencido.
Assim, contra as expectativas, a Rússia soviética sobreviveu. Os bolcheviques mantiveram, na verdade ampliaram, seu poder, não só (como observou Lênin com orgulho e alívio após dois meses e quinze dias) por mais tempo que a Comuna de Paris de 1871, mas durante anos de ininterrupta crise e catástrofe, conquista alemã e imposição de paz punitiva, separações regionais, contra-revolução, guerra civil, intervenção armada estrangeira, fome e colapso econômico.  Não podia ter estratégia ou perspectiva além de optar, dia a dia, entre as decisões necessárias à sobrevivência imediata e as que arriscavam um desastre imediato.  Quem podia dar-se ao luxo de considerar as possíveis conseqüências em longo prazo, para a Revolução, de decisões que tinham de ser tomadas já, do contrário seria o fim da Revolução e não haveria outras conseqüências a considerar? Uma a uma, as medidas necessárias foram tomadas.  Quando a nova República soviética emergiu de sua agonia, descobriu-se que essas medidas a haviam levado para um lado muito distante do que Lenin tinha em mente na Estação Finlândia.
Mesmo assim, a Revolução sobreviveu. E o fez por três grandes razões: primeiro, possuía um instrumento de poder único, praticamente construtor de Estado, no centralizado e disciplinado Partido Comunista de 600 mil membros. Qualquer que tenha sido seu papel antes da Revolução, esse modelo organizacional, incansavelmente propagado e defendido por Lênin desde 1902, atingiu a maioridade depois dela.  Praticamente todos os regimes revolucionários do Breve Século 20 iam adotar alguma variação dele. Segundo, era, de forma evidente, o único governo capaz de manter a Rússia integral como Estado e disposto a tanto, desfrutando, portanto, de considerável apoio de patriotas russos à parte isso politicamente hostis, como os oficiais sem os quais o novo Exército Vermelho não poderia ter sido construído.  Para estes, como para o historiador que trabalha em retrospecto, a opção em 1917 - 8 não era entre uma Rússia liberal-democrática ou não liberal, mas entre a Rússia e a desintegração, que havia sido o destino de outros impérios arcaicos e derrotados, ou seja, a Áustria-Hungria e a Turquia.  Ao contrário destes, a Revolução Bolchevique preservou a maior parte da unidade territorial multinacional do velho Estado czarista pelo menos por mais 74 anos. A terceira razão era que a Revolução permitira ao campesinato tomar a terra. Quando chegou a isso, o grosso dos camponeses da Grande Rússia núcleo do Estado, além de do seu novo exército achou que suas chances de mantê-la eram melhores sob os vermelhos do que se retomasse a fidalguia. Isso deu aos bolcheviques uma vantagem decisiva na Guerra Civil de 1918-1920. Como se viu, os camponeses russos foram otimistas demais.

HOBSBAWN. Eric. A ERA DOS EXTREMOS. O breve século XX. Companhia das letras

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